O conteúdo vai ao encontro do tema escolhido para a feição gráfica desta edição do Anuário do Ceará: os bens tombados e registrados no Estado. Neste capítulo, o professor doutor da UFC e ex-superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Ceará (Iphan‑CE), Romeu Duarte, faz um resgate histórico sobre os 80 anos do órgão no Brasil.
ROMEU DUARTE JUNIOR
(1959, Belo Horizonte (MG) é arquiteto e urbanista (CAUUFC/1985), professor do CAUUFC, desde 1991, mestre (2005) e doutor (2012) em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP, chefe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFC (2014 a 2016 e 2016 a 2018), conselheiro vitalício do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e ex superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Ceará (Iphan-CE), entre 1998–2008).
Os atos oficiais da preservação do patrimônio histórico-cultural no País¹ se iniciaram em 1933, com o tombamento, por decreto presidencial, da cidade de Ouro Preto, uma das mais destacadas do ciclo do ouro havido no século XVIII em Minas Gerais. Deflagradas no âmbito federal sem o concurso de uma instância ou órgão especificamente voltados à sua promoção, mesmo assim, desde o seu nascedouro, as ações de proteção dos acervos culturais no Brasil, notadamente os de natureza edilícia, serão marcadas pelo cunho estatal, de clara inspiração francesa.
Somente em 1937, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan (posteriormente Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan) no primeiro governo de Getúlio Vargas, é que o País passou a ter, na esfera federal, um órgão encarregado diretamente dessas responsabilidades.
O Conjunto de Monólitos de Quixadá é
um dos pontos turísticos do Ceará (Foto: Camila de Almeida)
Criado como a base legal para a operação do recém-nascido órgão, o Decreto-Lei nº 25/37², gerado no bojo da constituição outorgada de 1937, continua mantendo essa condição, confirmada por todos os diplomas constitucionais subsequentes. O caldo de cultura patrimonial à sua volta é curioso: quem irá se ocupar da preservação do patrimônio cultural brasileiro, batendo ponto diariamente na repartição federal, serão os intelectuais que já respondiam pela renovação de nossas expressões artísticas³.
Com efeito, serão os pioneiros modernistas, mineiros em sua maioria, reunidos em torno do prestígio de Gustavo Capanema, então ministro da Educação e Saúde, que vão dar concretude às ideias do Iphan. Começarão pelos inventários da arquitetura religiosa do período colonial, que lhes revelará a relevância e a urgência de sua tarefa, face à imensidão e ao mau estado de conservação do acervo.
A esta altura, eram a arquitetura e o urbanismo os focos de atenção dos estudiosos do instituto, as áreas de cultura prioritárias, portanto, para a pesquisa de contornos nacionais. De outra parte, será o conceito de “cidade-monumento”, elaborado a partir de sua própria condição de refinados estetas, que animará seu trabalho. Por este prisma, só serão alçadas à condição de patrimônio nacional aquelas manifestações arquitetônicas e urbanísticas produzidas sob o risco português, os materiais locais e o braço escravo, filiadas estilisticamente ao barroco colonial dos séculos XVII e XVIII.
As cidades deste período temporal, protegidas nesta etapa, serão contempladas como obras de arte perfeitamente acabadas e consagradas, dignas de estudo e reverência, as realizações de períodos posteriores relegando-se a patamar bastante inferior, consideradas espúrias. Este era um momento em que os pioneiros do Iphan repudiavam o emprego no presente das linguagens historicistas europeias (neoclássico, ecletismo, art nouveau, art déco etc.) e procuravam encontrar nexos entre a produção construída dos séculos coloniais e a modernista, num esforço de continuidade de uma tradição construtiva e espacial. Como bem disse Castriota (2009, p. 74), nesse período,
considerada como expressão estética privilegiada, a cidade é abordada segundo critérios puramente estilísticos, ignorando-se completamente sua característica documental, sua trajetória e seus diversos componentes como expressão cultural de um todo socialmente construído (…) Com isso, instaura-se ali, como de resto em todo o Brasil, uma prática de conservação orientada para a manutenção de conjuntos tombados como objetos idealizados, desconsiderando-se, muitas vezes, sua história real.
Serão os primeiros documentos preservacionistas de escala internacional, posteriormente, conhecidos como cartas patrimoniais, que, de certa forma, balizarão o ideário e a ação dos pioneiros do patrimônio no Brasil. A Carta de Atenas de 1933, um dos principais produtos teóricos do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam), apresenta em seu escopo noções que estruturam essa forma de conceber o patrimônio construído. Baseando-se no princípio funcional das quatro “chaves do urbanismo”, a saber, habitar, trabalhar, recrear-se e circular, a carta vai tratar a preservação do patrimônio edificado por uma ótica higienista e a-histórica característica do Modernismo, já que, para seus redatores,
a morte, que não poupa nenhum ser vivo, atinge também as obras dos homens (…) Nem tudo que é passado tem, por definição, direito à perenidade; convém escolher com sabedoria o que deve ser respeitado (apud CURY, 2004, p. 52),
o que deixa claro que esta última ação caberia somente aos técnicos envolvidos com a construção da nova cidade industrial.
É mister também reconhecer que a linha interpretativa dos grandes feitos e da contribuição dos “heróis” de nossa “história oficial” determinou fortemente essa peculiar compreensão e interpretação da trajetória sócio-histórica brasileira, na qual o povo, em sua miscelânea de classes sociais, raças, origens e credos, ainda não era reconhecido como seu principal protagonista. Daí a construção da imagem de um Brasil idealizado, com manifestações artísticas próprias, entendidas como dignas de proteção e valorização por parte dos pioneiros, em detrimento de outras não reconhecidas por estes como tal.
As ações do Iphan, consentâneas com essa orientação teórico-conceitual, vão, portanto, se concentrar nas regiões brasileiras que, para os intelectuais do patrimônio, expressavam de forma eloquente esse cenário imaginado. As cidades da administração colonial e imperial (Salvador e Rio de Janeiro) e as dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar (Recife, Olinda e João Pessoa), do ouro e das tropas (as urbes mineiras, paulistas e goianas), com sua diversificada, rica e por vezes suntuosa arquitetura, serão aquelas escolhidas para atendimento prioritário pelo órgão federal de preservação. Outros Brasis, seja pela ocupação territorial recente, seja por manifestarem, ao ver desses estetas, valores arquitetônicos e urbanísticos de menor relevância, terão que aguardar na fila até que estes sejam compreendidos e aceitos como legítimos, operação esta que consumirá tempo considerável.
É o que aconteceu com o Ceará, dentre outros estados‑membros da federação situados nessa zona cinza. O patrimônio edificado cearense só mereceu menção federal no fim da década de 1950⁴, com o tombamento em 1957, pelo Iphan, da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, em Aracati. Emblemático da postura anteriormente descrita é o tratamento concedido ao bem imóvel por Lúcio Costa em seu parecer, o que evidencia também os “cuidados” dispensados pelas instâncias administrativas locais ao acervo teoricamente posto sob a responsabilidade destas:
Arquitetonicamente, a Matriz de Aracati não tem qualidades que justifiquem a sua inclusão nos Livros do Tombo Artístico como monumento nacional. Excetuados, externamente, o conjunto das portadas e internamente a banca de comunhão, é obra destituída de qualquer significação artística. Embora edificada no século XVIII, o seu interior só foi concluído no século XIX, quando também foi acrescentada a volta redonda às janelas do coro. O retábulo singelo do altar-mor, mandado vir de Pernambuco, data de 1814. O varandão do coro foi posto em 1852, pelo tesoureiro Capitão Melquíades da Costa Barros, etc.
Contudo, como os governos estadual e municipal não se interessam pela preservação do patrimônio regional ou local, o recurso à intervenção federal visaria, no caso, unicamente impedir as obras desfiguradoras que se anunciam, dando-se assim satisfação ao louvável empenho demonstrado pela população e ao interesse manifestado pelo Dr. Gustavo Barroso⁵, sempre atento na defesa das obras antigas da sua terra (COSTA, apud PESSÔA, 2004, p. 147).
Neste momento, o patrimônio não despertava o interesse dos escassos arquitetos existentes no Estado, este destituído ainda de escolas de arquitetura ou de qualquer outra instituição de pesquisa nessa área.
Em meados da década seguinte, essa situação iria se alterar. Mediante a condução do Arq. José Liberal de Castro⁶, um dos paladinos do Modernismo em terras cearenses e então professor da Escola de Engenharia da UFC, o Ceará daria seus primeiros passos no sentido do reconhecimento federal do seu acervo construído dotado de interesse cultural. Com bom trânsito junto às autoridades do Iphan, foi comissionado pelo seu presidente, Dr. Rodrigo Melo Franco de Andrade⁷, para cuidar do patrimônio cearense de valor nacional. Os trabalhos tiveram início em 1964 com os tombamentos do Theatro José de Alencar e da Casa Natal de José de Alencar.
O primeiro remete aos experimentos de portabilidade da arquitetura do ferro fundido, produzidos na Europa na esteira da Revolução Industrial e exportados para o Brasil na passagem do século XIX para o XX, e o segundo, relaciona-se à singeleza das construções vernáculas, das quais o berço do pai do Romantismo brasileiro constitui-se num mostruário de técnicas construtivas antigas.
Em 1965, com a criação e o pleno funcionamento da Escola de Arquitetura e Artes da UFC⁸, Liberal de Castro passou a contar com apoio institucional e humano para realizar suas pesquisas relativas ao patrimônio construído cearense, de que é exemplo o notável esforço de inventariação de nossa arquitetura antiga, por ele conduzido até meados da década de 1980 com a ajuda dos seus muitos alunos. Foi também na metade da década de 1960 que se deu o tombamento federal do Passeio Público, a velha Praça dos Mártires de Fortaleza, tipologia urbanística típica do Império e associada às transformações espaciais havidas nas cidades brasileiras decorrentes da vinda da Família Real portuguesa ao Brasil em 1808.
Como elemento balizador dos tombamentos da arquitetura cearense, Liberal de Castro elegeu os processos sociais e históricos de ocupação do território da província, com suas penosas lidas civilizatórias ligadas à formação e evolução dos núcleos urbanos. Enfatizando o papel aglutinador dos ciclos econômicos havidos nos séculos XVIII e XIX, respectivamente o do charque e o do algodão, e das ribeiras dos principais cursos d’água (Acaraú, Jaguaribe e Salgado), desenvolveu uma linha de raciocínio e operação arrimada tanto no modus faciendi da “fase heroica”⁹ do Iphan quanto em uma história feita por homens sem rosto, nome ou sobrenome, na linha da narrativa histórica de um Capistrano de Abreu¹⁰. Sob essa ótica, passam a ser investigadas nossas primeiras aglomerações humanas, com realce para Aracati, Aquiraz, Fortaleza, Icó e Sobral.
Em 1968, o Governo do Ceará cria a Secretaria Estadual da Cultura, que já nasce com um serviço de patrimônio dotado de atribuições técnicas, legais e administrativas estruturadas pela Lei nº 9.109/68¹¹. Portanto, o Ceará passou a contar com uma instância voltada especialmente para a tarefa da preservação, mesmo antes do advento dos Compromissos de Brasília e Salvador, estes promovidos pelo Iphan respectivamente em 1970 e 1971, estes claramente influenciados pelos ditames preservacionistas constantes das Normas de Quito¹², motivaram os governos estaduais a criar secretarias estaduais de cultura e órgãos específicos de patrimônio cultural.
A década de 1970 se inicia com a liderança do órgão federal de preservação. Como reflexo da política nacional de patrimônio, consubstanciada nas ações do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas (PCH)¹³, são elaboradas, de modo preliminar, propostas de tombamento por parte do Iphan para os sítios históricos de Aracati e Icó, as quais só foram realmente finalizadas e levadas a efeito no final da década de 1990 e no início da década de 2000.
São tombadas as casas de câmara e cadeia de Quixeramobim (1972), Caucaia (1973) e Icó (1975)¹⁴, programas edilícios do período colonial relacionados à administração e à segurança das vilas. O prédio da antiga Assembleia Provincial¹⁵, em Fortaleza, projetado por Adolfo Herbster¹⁶, completa a lista de imóveis públicos protegidos pelo Iphan naquele período (1973), revelando o pendor da época pela preservação de edifícios de inequívoca relevância histórica, estética e social, mas com funções que, por si sós, já garantiriam, de certa forma, sua integridade física. A nota pitoresca vai para o tombamento, em 1974, da fachada da Igreja Matriz de Sant’Anna, em Iguatu, solicitação de conterrâneos de prestígio intelectual¹⁷ face à iminente execução de obras de reforma no templo, que o descaracterizariam completamente, propostas pelo titular da Diocese daquela cidade.
Os anos de 1980, no âmbito da proteção do patrimônio edificado cearense, serão marcados por várias novidades. A primeira delas é a implantação, em 1983, de uma delegacia regional do Iphan no Estado, a 3ª DR¹⁸, com jurisdição também no Rio Grande do Norte, cuja direção caberá ao Arq. Domingos Linheiro¹⁹. A arquitetura vernácula cearense será objeto de inventariação por parte da 3ª DR/Iphan, iniciando-se pela encontrada na Região Metropolitana de Fortaleza. A repartição recém-criada começará também a executar exemplares obras de restauro, tais como as efetuadas na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Almofala, em Itarema, e no Mercado da Carne, em Aquiraz.
Os tombamentos federais realizados na década em comento dão continuidade à práxis do período “heroico”: são protegidos o Mercado da Carne (1984), em Aquiraz; a Casa de Câmara e Cadeia de Aracati (1980); a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Almofala (1983), em Itarema; o Palacete Carvalho Mota (1983), em Fortaleza; e o Açude do Cedro (1984), em Quixadá, este de cunho paisagístico, talvez a grande ousadia do momento. A atividade de proteção, por parte da representação do Iphan no Ceará²⁰, só será retomada 14 anos depois, com os tombamentos dos sítios históricos.
Mas a boa notícia do período é o começo das atividades de proteção do patrimônio cultural na esfera estadual, com os tombamentos da antiga Casa de Detenção (1982), da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz) (1982), da Estação Ferroviária João Felipe (1983), do Farol do Mucuripe (1983), da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (1983), da Agência Centro da Caixa Econômica Federal (antigo Palacete Ceará) (1983), do Palácio da Luz (atual sede da Academia Cearense de Letras) (1983), em Fortaleza; da Casa de Câmara e Cadeia (atual Museu Sacro São José de Ribamar) (1983) e da Igreja de São José de Ribamar (1983), em Aquiraz; do Museu Jaguaribano (1983), em Aracati; do Hotel Casarão (1983), em Barbalha; do Teatro da Ribeira (1983), em Icó; e do Teatro São João (1983), em Sobral (1983).
A grande quantidade dos atos de proteção não esconde os mesmos propósitos e conceitos empregados nesse mesmo mister pelo órgão federal: são sempre imóveis destacados, em sua maioria públicos ou pertencentes à Igreja Católica, exemplares de uma arquitetura culta e relacionados às elites.
A década de 1990 se abre com a consideração da relevância da cultura e, por conseguinte, da preservação do patrimônio cultural, como função ligada à dinâmica urbana e ao desenvolvimento econômico e social, não mais como algo acessório ou mero enfeite administrativo. As obras de restauração do Theatro José de Alencar, levadas a efeito em 1990²¹, até hoje a intervenção do gênero de maior vulto realizada no Estado, evidenciaram essa nova condição, mesmo assim, às vezes esquecida pelas gestões municipais e estaduais.
Seguem-se os tombamentos no âmbito estadual: o Arquivo Público (antigo Solar Fernandes Vieira) (1995), o Banco Frota & Gentil (1995), o Cinema São Luiz (1991), a sede do Iphan-CE (antiga Escola Normal) (1995), a Praça General Tibúrcio (também conhecida como Praça dos Leões) (1991) e a Sucap/Coelce (antigo Hotel do Norte e atualmente o Museu da Indústria) (1995), em Fortaleza; a Casa de Câmara e Cadeia de Barbalha (1995); e a Igreja de Nossa Senhora da Soledade (1991), em São Gonçalo do Amarante.
Com a criação, em 1997, da Lei nº 8.023²², a Prefeitura de Fortaleza formaliza a sua responsabilidade quanto à proteção do patrimônio cultural com um diploma específico, decorrência da Constituição Federal de 1988²³. Anteriormente, os atos de proteção eram realizados por leis municipais específicas, abordando a preservação caso a caso. Dessa forma, foram protegidos a Capela de Santa Therezinha (1986), o Estoril (1986), os espelhos das lagoas de Messejana e Parangaba (1987), o Riacho Papicu e suas margens (1988), o Teatro São José (1988) e a Ponte dos Ingleses (1989), na gestão da prefeita Maria Luiza Fontenelle²⁴; o Parque da Liberdade (também conhecido como Cidade da Criança) (1991), na gestão do prefeito Juraci Magalhães²⁵; e a Feira de Artesanato da Beira Mar (1995), na gestão do prefeito Antônio Cambraia²⁶.
Esses tombamentos revelam uma intenção de valorizar, além de paisagens notáveis de Fortaleza, espaços utilizados no cotidiano pelos moradores da Cidade, todos de essência simbólica e afetiva, alguns mesmo de forte apelo popular, não se centrando propriamente em seus predicados arquitetônicos ou urbanísticos. Cumpre destacar também que, apesar da determinação constitucional, são ainda muito poucos os municípios cearenses que desenvolvem gestões oficiais no sentido da preservação do seu patrimônio cultural²⁷, razão da diminuta importância que a cultura ainda detém nas administrações municipais em nosso Estado.
Os anos de 1990 vão ser marcados também pelo surgimento, no Brasil, do conceito de patrimônio imaterial no cenário da preservação cultural. Considerado desde o início dos trabalhos do Iphan nesse campo, merecendo inclusive a realização de extraordinárias pesquisas por parte de intelectuais do porte de Mário de Andrade e de Luís da Câmara Cascudo, suas manifestações (celebrações, formas de expressão, saberes e fazeres e lugares) e os meios necessários à sua salvaguarda, apesar da menção constante da Constituição Federal de 198828, ainda não eram contemplados por um diploma legal específico isso só irá ocorrer, em nível federal, com a criação do Decreto nº 3.551, no ano de 200029.
Em 1997, em Fortaleza, o Iphan promove o seminário internacional “Patrimônio Imaterial: Estratégias e Formas de Proteção”, evento que balizará a elaboração do decreto anteriormente mencionado e que teve no documento “Carta de Fortaleza” a sua expressão máxima.
Contudo, serão os tombamentos federais dos sítios históricos cearenses a realização de maior envergadura da década. Efetuados de forma tardia e protegendo trechos de cidades já bastante prejudicadas pela descaracterização e destruição de vários edifícios e espaços significativos, iniciam-se com o de Icó, em 1998. Posteriormente, em 2000, o de Sobral, reclamado por um abaixo–assinado com mais de duas mil assinaturas. Na sequência, os de Aracati (2001) e Viçosa do Ceará (2002), este precedido em poucos meses pelo tombamento da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção.
Os tombamentos de Icó, Aracati e Viçosa do Ceará foram efetuados tomando-se por base os processos sócio-históricos de formação e evolução dessas cidades e o seu rebatimento em tipologias arquitetônicas e morfologias urbanas de maior interesse, com rigor na seleção do acervo edificado passível de proteção. Já o de Sobral foi marcado pela vinculação do urbano à sua dinâmica funcional, à sua forma atual e às principais referências culturais aí existentes, elementos estes definidores da preservação. Com efeito,
partiu-se do princípio que o patrimônio a ser preservado em Sobral não se compunha apenas das expressões materiais dos processos históricos e culturais aí ocorridos, mas também das manifestações culturais produzidas por esses processos (DUARTE JR., 2012, p. 336),
o que diz da complexidade da pesquisa elaborada como base para a efetuação do tombamento do sítio histórico sobralense, muito inspirada nos cânones da Nova Historiografia30 e nos moldes da “cidade-documento”31. As proteções dessas especiais áreas contribuíram sobremaneira para a problematização das questões urbanas no Estado, colocando a preservação como uma função a ser doravante considerada de forma obrigatória nos processos de planejamento urbano municipal. Na esteira dos tombamentos dos conjuntos urbanos cearenses, efetuou-se a ação do Programa Monumenta32 no Ceará, com destaque para as obras de conservação, restauro e adaptação levadas a efeito em Icó.
O século XXI se inicia com a intensificação dos processos de proteção, principalmente no âmbito do município de Fortaleza. Procurando ampliar o protagonismo da atuação municipal, a administração Fortaleza Bela, tendo à frente a prefeita Luizianne Lins³³, deflagrou suas ações tombando os bens imóveis existentes na Cidade protegidos nas esferas estadual e federal. Com o apoio do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico e Cultural (Comphic), procedeu ao tombamento de diversos imóveis de escalas, tipologias e essências arquitetônicas variadas e à abertura de uma grande quantidade de processos de proteção edilícia³⁴, estes em boa medida prejudicados pela falta de regulamentação de instrumentos urbanísticos de mediação entre a preservação e o mercado imobiliário e a atuação desconexa das instâncias municipais.
O Estado, mesmo ressentindo-se de quadros técnicos, de um órgão específico dotado de maior estrutura e de melhores condições de trabalho e de uma efetiva política pública de patrimônio, registrou um aumento de bens tombados³⁵ no período da gestão do governador Lúcio Alcântara³⁶, esforço este sem continuidade no governo posterior de Cid Ferreira Gomes³⁷, expresso pelo funcionamento errático do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Coepa).
Foram anotados ainda os tombamentos, pelo Iphan, do conjunto de monólitos de Quixadá (2004), da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (2008) e do Sítio Alagadiço Novo (2012), este em complementação da Casa de José de Alencar. Na representação cearense do órgão federal merecem destaque o trabalho do Laboratório de Conservação e Restauração de Papéis e dos escritórios técnicos dos sítios históricos de Icó e Sobral. Como novidade, a proteção, pela via do registro, de manifestações locais da Roda de Capoeira (2008), do Ofício dos Mestres de Capoeira (2008) e do Teatro de Bonecos do Nordeste (Casimiro Coco) (2015) e da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha (2015). Porta (2012, p. 150-151) resume bem o período enfocado:
No âmbito do patrimônio material houve um considerável aumento do acervo tombado pelo Iphan, destacando-se os tombamentos de Sobral (2000), Aracati (2001) e Viçosa do Ceará (2002), bem como da paisagem natural do conjunto de serrotes de Quixadá. O tombamento de conjuntos urbanos e de uma paisagem, mais do que uma mudança quantitativa, representou uma mudança na dinâmica de ação do Iphan no estado, pelo aumento do fluxo de atividades e, principalmente pela participação social que ocasionaram (…) Houve um considerável fortalecimento institucional da Superintendência. A admissão de novos servidores por concurso diversificou as áreas técnicas e ampliou a capacidade de trabalho. Em 2004, foram criados Escritórios Técnicos em Icó e Sobral. O orçamento executado pelo Iphan no Ceará cresceu de R$ 448 mil em 2000 para R$ 7,87 milhões em 2010.
Quais os desafios à proteção do nosso acervo? Se estas manifestações de arte e história ainda permanecem desconhecidas da maior parte do público é porque não há ainda obras de referência ou outros meios de promoção ao dispor do interesse popular. Em resumo: sabe-se ainda muito pouco sobre o patrimônio cultural do Ceará. Permanecendo dissociado dos processos de desenvolvimento socioeconômico, o patrimônio não cumpre a sua função de “instrumento” (DUARTE JR., 2012, p. 429) para a melhoria das condições de vida das comunidades, principalmente aquelas mais carentes, isso faz com que seja impositiva a sua consideração como ativo e recurso fundamental, conforme estabeleceram as Normas de Quito, de maneira a que possa se consolidar como eminente função urbana e influir nos rumos dos planejamentos das cidades.
Para tanto, faz-se mais que necessário que os municípios se organizem e se estruturem para a montagem de uma política pública de patrimônio, que deverá se iniciar com um amplo trabalho de identificação e documentação dos seus acervos, em largo escopo, pois, como disse muito bem o Dr. Rodrigo Melo Franco de Andrade³⁸, “só se conhece o que se preserva e só se preserva o que se conhece”. Essa operação, realizada com o apoio dos municípios, do Estado, do Iphan e, quem sabe, da iniciativa privada, trará a lume manifestações que confirmarão a riqueza e a diversidade de nossa particular cultura, num momento em que o patrimônio se expande de forma cronológica, tipológica e geográfica, ampliando-se também o público interessado em seus assuntos. Assim, as ações dos conselhos municipais e do Coepa conformam-se como um ponto-chave, de forma a garantir essência democrática às decisões sobre o que proteger e preservar.
De modo específico, a criação de um órgão estadual de patrimônio, nos moldes dos institutos existentes na Bahia (BA) e em Minas Gerais (MG), autônomos e bem estruturados, preencherá a preocupante lacuna atual, resolvendo a dívida do Estado para com essa faceta de nossa cultura. Na mesma linha, a atualização ou a criação das legislações patrimoniais, reconhecendo as peculiaridades e a complexidade das manifestações culturais e as maneiras apropriadas de salvaguarda, tendo em vista a existência do tombamento, do registro e, agora, da chancela³⁹.
No marco do término desta tarefa, parece ter se construído, talvez inconscientemente, uma informação sobre a ação do Estado, em suas vertentes federal, estadual e municipal (Fortaleza), sobre o patrimônio cultural cearense. Como vimos, há muito ainda o que fazer. Por fim, deve-se considerar que proteger e preservar são verbos de significados diferentes, mesmo operando sobre o mesmo objeto; o primeiro se refere a um ato legal e distintivo que impõe uma tutela estatal sobre um determinado bem. O segundo diz respeito à manutenção e ao uso deste mesmo bem, à sua passagem pelo tempo e ao seu usufruto pela comunidade. Saibamos distingui-los e utilizá-los adequadamente.
CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio cultural – conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo: Annablume, 2009.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: UNESP, 2002.
CURY, Isabelle. Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro: Edições IPHAN, 2004.
DIÓGENES, Beatriz Helena Nogueira; DUARTE JR., Romeu. Guia dos bens tombados do Ceará. Fortaleza: SECULT, 2006.
DUARTE JR., Romeu. Novas abordagens do tombamento federal de sítios históricos – política, gestão e transformação: a experiência cearense. São Paulo: (Mestrado, 2005) – Universidade de São Paulo.
______. O Ceará e o patrimônio cultural. In Bonito pra chover – ensaios sobre a cultura cearense, CARVALHO, Gilmar de, (Org.). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003.
______. Sítios históricos brasileiros: monumento, documento, empreendimento e instrumento – o caso de Sobral-CE. São Paulo: (Doutorado, 2012) – Universidade de São Paulo.
FONSECA, Cecília Londres da. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Edições UFRJ/IPHAN, 1997.
LIMA, Ewelyn Furquim Werneck. Corredor Cultural do Rio de Janeiro: uma visão teórica sobre as práticas de preservação do patrimônio cultural. In Fórum Patrimônio, v. 1, n. 1 (2008). Belo Horizonte: Edições UFMG, 2008.
NASCIMENTO, José Clewton do. (Re)descobriram o Ceará? – representações dos sítios históricos de Icó e Sobral: entre areal e patrimônio nacional. Florianópolis: ANPUR, 2011.
PESSÔA, José, (Org.). Lúcio Costa: documentos de trabalho. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004.
PORTA, Paula. Política de preservação do patrimônio cultural no Brasil – diretrizes, linhas de ação e resultados. Brasília: IPHAN/Monumenta, 2012.
SANT’ANNA, Márcia Genésia de. Da cidade-monumento à cidade-documento – a trajetória da norma de preservação de áreas urbanas no Brasil. Salvador: Dissertação (Mestrado, 1995) – Universidade Federal da Bahia.