Centenário Aldemir Martins

O centenário de um de nossos maiores artistas é o tema do capítulo especial e inspiração para o projeto gráfico do Anuário 2022-2023. Aldemir Martins deixou sua marca em uma carreira profícua de sete décadas e mais de sete mil obras.

Capítulo Especial 2022-2023

Centenário de Aldemir Martins


O centenário de um de nossos maiores artistas é o tema do capítulo especial e inspiração para o projeto gráfico do Anuário 2022-2023. Aldemir Martins deixou sua marca em uma carreira profícua de sete décadas e mais de sete mil obras. No acervo, galos e outras aves; cangaceiros; gatos e muitas flores e frutas. Sem cerimônia, ele levou seus traços para a abertura de telenovelas – Gabriela (1975) e Terras do Sem Fim (1981) -, embalagens de sabonetes, latas de tintas e de sorvetes. A quem o criticava, dizia que até a Capela Sistina de Michelangelo foi encomendada.


Viveu as agruras do rapaz latino-americano sem dinheiro no banco no Sudeste, cantadas pelo amigo Belchior, e o reconhecimento internacional na Bienal de Veneza, como Melhor Desenhista Internacional. Essas e outras passagens de 100 anos são contadas de modo primoroso pela jornalista Bruna Forte nas páginas a seguir.


Apresentação

Criado no Oco do Mundo


No Cariri, as paredes dos casarões são pintadas com cores sólidas: amarelo fremente, branco puro feito cal e azul — aquele azul profundo, azul de paz, azul de oração, emprestado do céu. O escritor Milton Dias (1919-1982), olhos perdidos no firmamento, versou: “Esta cor é exclusiva do Ceará, feita duma tinta que o Senhor reserva só para nós, tão especial e ao mesmo tempo tão surpreendente, que parece sempre inédita”. Nas salas conjugadas das residências menores, compridas, o Sagrado Coração dependurado e a água do filtro de barro oferecem generosas boas-vindas aos que se achegam. Entre esses dias mornos que passam até mais devagar, Aldemir Martins rebentou ao mundo.


Filho de Miguel de Souza Martins e Raimunda Costa Martins, Aldemir nasceu pelas Ingazeiras em 8 de novembro de 1922. Distrito do município de Aurora, a 464 quilômetros da capital Fortaleza, a cidade é feito pavão misterioso: nos feitiços subterrâneos das vidas, severinas e de viés, os saberes dos encantados correm velozes como sangue nas veias e atravessam gerações. Renomado artista visual, ilustrador, pintor e escultor autodidata, Aldemir é fruto dessa terra sagrada, comunhão entre ontem e amanhã.


Ao longo de 70 anos dedicados à arte, Aldemir produziu mais de sete mil obras. O repertório formal do artista, constantemente retomado, inclui aves, principalmente galos; cangaceiros, inspirados nas figuras de cerâmica popular; gatos, desenhados com linhas sinuosas; e uma variedade de flores e frutas. Entre seus dedos finos e ágeis, os pincéis espalharam cores intensas e contrastantes, inconfundíveis marcas do cearense. Nas tardes de interminável calor do Cariri cearense, Aldemir fez-se artista.


“Aldemir era uma criança inquieta que fazia desenhos para dar para um tio que tinha dinheiro — a cada desenho, recebia um dinheirinho, então enchia o tio de desenhos”, ri-se Pedro Martins, filho do artista. “Meu pai recebeu influência do Vale do Cariri, das rendeiras, dos desenhos rupestres de peixes e pássaros… Tudo isso ficou na retina de Aldemir logo no início da infância. Ele pintava com carvão, com tijolo na calçada”, rememora. Miguel, avô de Pedro, era encarregado da construção de estradas de ferro na Rede Viação Cearense, por isso a família se mudou várias vezes durante a infância do pintor e escultor. Quando Aldemir tinha 11 anos, os pais se estabeleceram no município de Pacatuba.


O fascínio de Aldemir pelo desenho atravessou a vida do artista e fez-se presente até a data de sua morte, em 6 de fevereiro de 2006, aos 83 anos. Ainda em 1934, nos louros da juventude, foi enviado ao Colégio Militar de Fortaleza e a habilidade com traços e formas era tamanha que logo o caririense tornou-se orientador artístico da classe. Em 1939, foi transferido ao Ateneu São José, onde concluiu o curso ginasial. No período de 1941 a 1945, serviu ao Exército Brasileiro — nas Forças Armadas, o nomeado “Cabo Pintor” desenhou o mapa aerofotogramétrico de Fortaleza e conquistou seu primeiro prêmio ao vencer o concurso promovido pela Oficina de Material Bélico da 10ª Região Militar.


Nos tempos do Exército, Aldemir conheceu outro grande nome das artes visuais cearenses: Antonio Bandeira (1922-1967). Os amigos, ao lado de Mário Baratta (1915-1983), Barbosa Leite (1920-1996), Carmélio Cruz (1924-), Inimá de Paula (1918-1999) e demais artistas, fundaram a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap) a partir do ainda anterior Centro Cultural de Belas Artes (CCBA) em 1944. O Centro e a SCAP forjaram talentos como Heloísa Juaçaba (1926-2013), Zenon Barreto (1918-2002), Barrica (1913-1993), Nice Firmeza (1921-2013), Estrigas (1919-2014) e Jean-Pierre Chabloz (1910-1984), que consolidaram o cenário cultural no Ceará.


O centenário do nascimento de Aldemir, celebrado em 2022, ilumina o inestimável legado do artista: o menino das Ingazeiras, que implorava ao pai por lápis para colorir, viveu da arte. Desenhou pratos para a Goyana e brinquedos para a Grow; popularizou as formas do Nordeste pelo Brasil. O mestre aprendeu e ensinou que todos podem ter obras de arte ao alcance das mãos, que as mesas de jantar das famílias também são museus repletos de histórias. “Meu pai tinha muito orgulho disso, eu lembro da felicidade do Aldemir ao voltar de uma viagem e o taxista ter comentado que tinha uma obra dele em casa em uma lata da Kibon”, compartilha a filha Mariana Pabst Martins. Entre desenhos, xilogravuras, aquarelas e pinturas, Aldemir Martins consagrou-se. O futuro já sabia.


Início da Vida Artística de Aldemir Martins

O Sul, a Sorte, a Estrada


Com asa no pé e corpo afeito à estrada, Aldemir Martins foi eterno errante, caçador de acasos. Nasceu assim, coisa feita: Raimunda, indígena do Alto Purus, encantou-se pelo português Miguel e desceu em busca de sorte no amor. O filho do casal ganhou olhos ancestrais, atentos ao interlocutor, “não perdendo movimento por menor que fosse, tudo ele observava e muito do que via transformava em desenho e pinturas”, nas palavras do cantor e compositor Ednardo.


Em 1945, Aldemir mudou-se para o Rio de Janeiro. “Ele adorava o Ceará, todas as coisas do Ceará, mas tinha a impressão de que, no Estado, todo mundo era funcionário público. Aldemir tinha horror à vida de funcionalismo tradicional”, resgata Mariana Pabst Martins. “Teve muita dificuldade quando chegou ao Sudeste, era o retrato do ‘rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior’, como diria seu amigo Belchior”, continua. Em terras cariocas, trabalhou com artistas renomados como Di Cavalcanti e participou de uma coletiva na Galeria Askanasy organizada pelo pintor suíço Jean-Pierre Chabloz (1910-1984).


“Mas meu pai era muito disciplinado. Logo percebeu que, no Rio, cairia numa vida de boemia — e queria mesmo trabalhar”, rememora Pedro Martins, fruto de seu primeiro casamento com Amélia Bauerfeld. Menos de um ano depois da partida do Ceará, Aldemir mudou-se para São Paulo. Entre 1949 e 1951, frequentou os cursos do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e tornou-se monitor da instituição. Na terra da garoa, estudou história da arte com Pietro Maria Bardi (1900-1999) e gravura com Poty Lazzarotto (1924-1998). Durante o curso, produziu o álbum de gravuras “Cenas da Seca do Nordeste”, com prefácio da escritora Rachel de Queiroz (1910-2003). A influência do pintor Candido Portinari (1903-1962), no tratamento do tema e no traço, é evidente nesses trabalhos de Aldemir. Foi na capital paulista também que o cearense ganhou sua primeira exposição individual, realizada no Instituto de Arquitetos do Brasil na década de 1940.


Antônio Carlos Belchior (1946-2017), amigo de Aldemir, versou a vida dos jovens que caem nas grandes cidades ao Sul do Brasil na canção “Fotografia 3×4” (1976): “O sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua”. Como tantos outros nordestinos que migram seduzidos pelo ouro em pó que reluz, o pintor e desenhista enfrentou aridez no início de sua trajetória em São Paulo. O cearense retomou as atividades jornalísticas, iniciadas ainda em Fortaleza, com ilustrações para a coluna “Bairros na Berlinda” publicada pelo “Correio Paulistano”. Assinou também a coluna “Daniel comenta e Aldemir ilustra”, do periódico “A Noite”. Fez, ainda, ilustrações para “O Jornal de São Paulo”, para “O Diário” e para a revista “Elite”; e desenhou textos e poesias de escritores como Domingos Carvalho da Silva, José Escobar Faria, Mário da Silva Brito, Jorge Medauar, André Carneiro, Dulce Carneiro e César Memolo Júnior.


“O Aldemir, quando chegou ao Sul, foi patrocinado por mecenas cariocas e paulistas. Era amigo de todo mundo, mas sofreu porque era um artista pobre. Ele levava tinta nanquim e uma caneta para todas as redações de jornais em busca de vender uma ilustração semanal, passava na tesouraria, pegava o dinheiro da arte e fazia a feira. Autodidata, meu pai trabalhava muito: tinha um horário comercial e até a morte chegava às 9h da manhã no ateliê, saía às 13h para almoçar, retornava às 15h e ficava até às 18h”, relata Pedro.


O jornalismo, nas memórias do filho que hoje encarrega-se do legado do pai, ensinou muito ao Aldemir: “Chegava na redação, entregavam oitos páginas para elaborar o desenho, ele sentava e desenhava. Às cinco horas da manhã, o jornal estava nas bancas. Sempre foi muito disciplinado, trabalhava bastante para poder sustentar a vida que desejava. O Aldemir se consagrou em vida, conseguiu vender bastante e alcançar bons preços”.


Em 1947, o cearense foi convidado a participar da exposição “19 Pintores” — uma importante marca para uma nova geração de artistas brasileiros. Terceiro colocado na mostra, passou a integrar ativamente os principais salões de arte do País e recebeu vários prêmios. “Aldemir era um um trabalhador da arte, fazia o próprio marketing, corria atrás do próprio dinheiro. Meu pai viveu rico, mas não morreu rico — ele não tinha essa pretensão de guardar nada, dizia sempre: ‘Prefiro viver rico que morrer rico. Vocês, meus filhos, se virem depois’”, conta Pedro, aos risos.


Filho pródigo, retornou em visita ao Ceará em 1951 e voltou para São Paulo num caminhão pau de arara. A vivência motivou uma série de desenhos com a temática nordestina, como rendeiras e cangaceiros. Da saudade de suas terras, ilustrada em cores vivas, nasceu o trabalho que rendeu o  importante Prêmio de Desenho Olívia Guedes Penteado na I Bienal de São Paulo. A verba gerou mais andanças: Aldemir embrenhou-se no roteiro do cangaço acompanhado pelo arquiteto, designer e paisagista José Zanine Caldas (1919-2001) e pelo escultor, gravador e desenhista Mario Cravo Júnior (1923-2018).


“Era louco por livros, revistas e jornais. Passou a vida inteira lendo cinco jornais por dia. Os livros de arte do meu pai eram maravilhosos!

Foi uma vivência muito rica. A maior diferença do Aldemir é que ele tinha muita curiosidade para aprender. ‘E se a gente fosse conhecer o Amazonas? Ou uma cachoeira no interior de Minas? Ou uma obra isolada?’. Aldemir tinha muita curiosidade para conhecer pessoas e lugares, viajar. Amava ensinar, aprender, comentar, dividir esses conhecimentos e conversar”, elenca Mariana.


Em 1952, o cearense participou da Exposición de Pinturas, Dibujos y Grabados Contemporáneos del Brasil em Santiago, no Chile, ao lado de obras dos artistas Anita Malfatti (1889-1964), Arnaldo Pedroso D’Horta (1914-1973), Milton Dacosta (1915-1988) e Tarsila do Amaral (1886-1973). No ano seguinte, Aldemir integrou o III Salão Nacional de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, e recebeu o Certificado de Isenção do Júri; e a II Bienal de São Paulo, onde ganhou o Prêmio Aquisição Nadir Figueiredo. Nos idos de 1954, realizou seu primeiro trabalho cenográfico para a peça “Lampião”, de Rachel de Queiroz, encenada em São Paulo. Em 1955, compôs a exposição no V Salão Baiano de Artes Plásticas, em Salvador; e o IV Salão Paulista de Arte Moderna — em ambos os eventos, ganhou Medalha de Ouro.


Na década de 1950, Aldemir iniciou a pintura de uma série de painéis. Deu cores ao bar “O Cangaceiro”, no Rio de Janeiro, reduto da boemia carioca frequentado por pintores, jornalistas e escritores da época — entre eles, Dorival Caymmi (1914-2008) e Ary Barroso (1903-1964). Em São Paulo, executou dois painéis para o Aeroporto de Congonhas. Já no Ceará, o vidrotil colorido localizado no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura é o mais reconhecido de Aldemir no Estado: intitulada “Mural Ceará”, a grandiosa obra de 28,9 x 7,1m na rampa de acesso ao Anfiteatro foi instalada nos anos 2000 e marcou o retorno do já octogenário Aldemir ao mosaico após quase 50 anos. O painel no CDMAC esbanja ícones locais como praias, dunas, jangadas, pescadores, vegetação do semiárido, frutas típicas, vento e luz.


O auge do reconhecimento internacional de Aldemir deu-se em 1956: em Veneza, na Itália, o artista recebeu o Prêmio Prezidente del Consigli dei Ministri da XXVIII Biennale di Venezia, atribuído ao Melhor Desenhista Internacional. “Só depois que se consagrou, já nos anos 1960, Aldemir conseguiu comprar tintas importadas e trabalhar só com acrílico. Quando ganhou a Bienal de Veneza, comprou papel importado. Aldemir sempre se considerou mais desenhista que pintor. Costumava dizer: ‘Não sei se estou entre os maiores pintores do Brasil, mas sei que entre os maiores desenhistas do mundo eu devo estar’”, narra Pedro.


No ano de 1959, Aldemir recebeu o prêmio de viagem ao exterior do Salão Nacional de Arte Moderna e alçou voo: por dois anos, morou na Itália e cartografou a vida e a cultura do país com a mesma curiosidade do menino que descobriu a imensidão do mundo ainda nas Ingazeiras cearenses.


Arte para o Mercado

A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade


Aldemir Martins foi inovador ao trabalhar com pintura, gravura, desenho, cerâmica e escultura e utilizar os mais diferentes materiais. Autodidata, aprendeu por curiosidade e parceria — a generosidade do artista rendeu-lhe amigos, experiências, trocas. Rosely Nakagawa, curadora independente graduada em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura em 1977 e com especialização em Museologia em 1979 pela Universidade de São Paulo, destaca a importância das alianças do cearense: “Sou casada com um pintor que teve no Aldemir Martins mais do que uma referência.


Para Rubens Matuck, meu marido, filho de coronel médico, durante a ditadura, Aldemir foi um pai e mentor. Sem ele, o Rubens não conseguiria seguir sua carreira. Se conheceram quando Rubens tinha 12 anos de idade e estudava com seu sobrinho (por parte da esposa Cora Pabst) Robson Pabst. Em 1973, eu conheci os dois na Faculdade de Arquitetura da USP, onde conheci também a filha do Aldemir, Mariana  Pabst Martins”.


A marca do trabalho de Aldemir Martins, na análise da curadora, é a forte relação com a cultura brasileira. “Ele foi formado na região mais rica do Brasil, o Cariri, e nunca deixou isso ser influenciado por movimentos artísticos europeus ou americanos. Generoso como ninguém, sempre esteve atento a artistas jovens de São Paulo e do Nordeste para quem precisasse de um livro, material artístico, ajuda numa viagem, um curso que complementasse sua formação. Aldemir participou de uma geração que valorizou o Brasil mais do que tudo.


Atravessou o movimento concretista, o neoconcretista, mas permaneceu inabalável na sua rota de desenho limpo, cores fortes e temas brasileiros ligados ao homem, sua cultura e meio ambiente”, explica.


“Aldemir não tinha preconceito, isso se refletiu na sua obra mais do que nos demais artistas de sua geração. Para ele, toda forma de expressão artística tinha seu valor. A música popular, erudita, o tocador de tambor, o desenhista de letras nas paredes, o pintor de ‘liso’ como se chamavam os pintores de parede, os pintores de calçada, todos eram pintores”, ressalta Rosely Nakagawa. “Isso se refletiu no movimento de reconhecimento e inserção que estamos vivendo hoje. Mas ainda com muito preconceito a vencer.”


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Mariana Pabst Martins, arquiteta graduada pela Universidade de São Paulo e artista visual, eterniza o trabalho do pai em cada gesto. Fundou, ao lado do artista Baixo Ribeiro e do historiador Eduardo Saretta, as galerias Choque Cultural e Acervo da Choque, localizadas na cidade de São Paulo. “O Aldemir me influenciou de muitas maneiras — não só como artista. Há 18 anos, eu tenho uma galeria dedicada a artistas jovens, com certeza é algo que o meu pai gostaria de fazer. Aldemir era um amigo muito generoso, gostava de apoiar as pessoas que estavam precisando. Eu criei a galeria muito pensando nele também, é uma galeria para artistas que nem sabem que são artistas. A minha galeria foi precursora na arte urbana, no compreender um pixador como artista”, reflete.


“Eu tenho memórias muito boas: adorava assistir meu pai desenhando. Ele tinha uma mesa bonita, grande — que agora está com meu filho — e ficava em casa a desenhar. Lembro-me do som da pena no papel, do cheiro do nanquim e da madeira… A única coisa que eu não podia fazer era encostar na mesa!”, compartilha entre gargalhadas. Mariana é filha de Aldemir com Cora Pabst (1920-2013), sua companheira de vida. “Minha mãe foi exímia, muito habilidosa, grande cozinheira. Ela conheceu o meu pai no Masp quando foi fazer um curso de gravura na década de 1950. Se encontraram, se conheceram, se apaixonaram, largaram os respectivos esposos e foram viver juntos”, resgata.


O encanto de Aldemir pelas múltiplas possibilidades de acesso à obra de arte transformou o olhar do brasileiro sobre a cultura. “Albrecht Dürer (1471-1528), gravador, pintor, ilustrador, matemático e teórico de arte alemão, praticamente não pintava — fazia gravura porque a gravura era acessível. Ele sempre desenhava escudos, talheres, pratos… Se resgatarmos a história, essa é uma característica indígena, a arte ritual e utilitária. O papai sempre teve muito isso e isso passou pra mim”, continua Mariana. “Aldemir valorizou a arte do seu lugar. Na Suécia, o design valorizado é o sueco, por exemplo. Mas no Brasil, a grande valorização é das tendências estrangeiras. Isso desvaloriza qualquer produto brasileiro, não só a arte. A valorização da nossa cultura é muito importante para a gente saber qual é o nosso lugar no mundo.”


Na década de 1960, Aldemir trabalhou com arte aplicada a objetos comerciais. Criou cenário para o 1º Festival da MPB, da TV Record, e elaborou estampas para tecidos da Rhodia Têxtil em 1962. A coleção de 79 peças, selecionadas por Pietro Maria Bardi — diretor-fundador do Masp —, foi doada em 1972 pela Rhodia ao museu.


Além do cearense, outros artistas e estilistas então contemporâneos criaram ilustrações para as peças únicas, feitas sob medida e apenas para promoção da marca: Willys de Castro (1926-1988), Hércules Barsotti (1914-2010), Antonio Maluf (1926-2005), Waldemar Cordeiro (1925-1973) e Alfredo Volpi (1896-1988) com abstração geométrica; Manabu Mabe (1924-1997) e Antonio Bandeira (1922-1967) com abstração informal; Carybé (1911-1997), Lula Cardoso Ayres (1910-1987), Heitor dos Prazeres (1898-1966), Manezinho Araújo (1910-1993), Gilvan Samico (1928-2013), Francisco Brennand (1927-2019) e Carmélio Cruz com referências populares brasileiras; Nelson Leirner (1932-2020) e Carlos Vergara (1941) com arte pop, entre outros.


Aldemir assina nove trajes entre os que se encontram hoje no acervo do Masp, sendo o artista com o maior número de peças remanescentes do projeto da Rhodia. Numa louvável transposição dos temas de seus trabalhos para o tecido, o cearense estampou galos e galinhas da Angola, paisagem do sertão, cangaceiros e futebol. Entre as vestimentas, há um conjunto de blusas de seda Rhodianyl de 1960; um conjunto de túnica e calça do estilista José Ronaldo em tela Rhodalba de 1963; uma blusa quimono produzida por Júlio Camarero de 1964; um vestido curto trapézio do estilista Jorge Farré em tela sintética tipo bouclê de 1966; e um conjunto de blusa e short de Alceu Penna de 1968.


Ainda nos anos 1960, o cearense ilustrou utensílios domésticos com a série Goyana de Cora — aparelhos de jantar com estampas de flor de maracujá e caju encomendados pela Goyana, fábrica de cadeiras, mesas, móveis e outros artefatos de plástico. Na mesma década, dedicou-se a esculturas de cerâmica e acrílico, além de joias em ouro e prata.


Em 1969, Aldemir ilustrou bilhetes de loteria e, seis anos mais depois, criou a icônica imagem de abertura da telenovela “Gabriela”, da Rede Globo. Adaptação do romance “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, a produção foi dirigida por Walter Avancini e Gonzaga Blota. Nos idos de 1981, voltou ao audiovisual ao ilustrar a abertura de “Terras do Sem Fim”. Escrita por Walter George Durst, foi baseada também no romance do escritor baiano e dirigida por Herval Rossano.


“A relação com o mercado sempre foi bem-vinda. Aldemir sempre fez muitas encomendas. Os puristas consideravam os artistas que aceitavam esses trabalhos muito comerciais e o Aldemir foi muito criticado por desenhar pratos para a Goyana e latas de sorvete para a Kibon, mas lembrava sempre que até a Capela Sistina de Michelangelo foi encomendada”, comenta Pedro Martins.


Dodora Guimarães, curadora de arte, é uma profunda admiradora do trabalho de Aldemir. Conheceu o filho das Ingazeiras por meio de seu marido, Sérvulo Esmeraldo (1929-2017). Escultor, gravador, ilustrador e pintor, Sérvulo é um dos maiores nomes das artes visuais cearenses.


“O Sérvulo sempre enalteceu muito a generosidade do Aldemir Martins, o coração tão grande que ele tinha, o acolhimento. Quando Sérvulo chegou a São Paulo, em 1951, o Aldemir já estava lá — sempre muito expansivo, muito comunicativo, muito envolvente. Aldemir introduziu o Sérvulo no cenário artístico paulista ainda no contexto de preparação da I Bienal de São Paulo, apresentou artistas e críticos”, relembra.


“Depoimentos dessa natureza eu ouvi também do fotógrafo Chico Albuquerque, que sempre se referiu ao Aldemir como um homem de coração largo que aglutinava as pessoas. Sérvulo era muito grato ao Aldemir e à Cora, era uma amizade com muita familiaridade, com muito afeto. Tinha muito respeito por ele e sempre cobrava dos historiadores, curadores e críticos de arte atenção à obra do Aldemir Martins”, ressalta a presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo.


Para Dodora, a reconhecida grandiosidade de Aldemir era também aplicada potencialmente na arte que ele praticou. “O Aldemir foi o nosso artista pop primeiro, o artista que realmente quis popularizar a arte. Ao estampar a louça que a Goyana introduziu em plástico nos serviços de mesa, Aldemir aproximou a arte da indústria numa produção nova, moderna, bonita e diferenciada. Essa forma de contribuir com arte para artefatos utilitários foi muito importante — e também foi mal compreendida dentro do meio artístico”, compartilha.


“Eu louvo muito a possibilidade de qualquer pessoa ter a possibilidade de ter um Aldemir Martins à sua mesa, numa toalha Artex estampada pelo artista. Esse é um modo de atualização da cultura, de emparelhar arte e indústria — por que não? No momento que a presença da indústria era tão decisiva no Brasil, um artista estar concatenado com essa ideia é muito importante. Foi o Aldemir que introduziu o repertório de elementos icônicos da cultura nacional no imaginário das pessoas com muita maestria.


Coleção no Mauc, influência no/do Ceará

Galos, Noites e Quintais


Ao receber o título de cidadão paulistano pelo Governo Estadual de São Paulo, nos idos de 1976, Aldemir Martins sentenciou: “A minha obra de artista e o que clama latente em mim como conteúdo para a criação aqui se expressou insopitavelmente. E se nasceram as rendeiras e cangaceiros, é que o recuo amoroso que São Paulo me permitiu em relação ao meu mundo originário garantiu a autenticidade dessa recuperação do friso de personagens destacados da grande humanidade do Nordeste”.


Filho do sertão caririense, Aldemir quedava-se no Ceará para aquietar o imigrante coração: rede armada na varanda, fruta colhida no pé, brisa do mar… O artista tinha uma casa na Prainha, recanto no município de Aquiraz. “Gostava mesmo era de gozar as férias no Ceará, acabar com a saudade gastronômica do camarão, da lagosta, do melado com farinha, da buchada. Comia doce de jaca às 4h da manhã antes de dormir”, relembra Pedro.


“Aldemir foi o primeiro artista da família. Meu pai sempre contava uma história que, depois de ter ganhado a Bienal de Veneza, Seu Miguel falou: ‘Meu filho, agora que você já é consagrado nesse negócio de desenho, por que não arruma um trabalho na Prefeitura e faz isso nos finais de semana?’. Meu avô achava que ser artista não daria pano para manga, mas Aldemir conseguiu e ganhou muito dinheiro, consolidou-se.


Acho que meu pai tinha trauma da dificuldade que teve no começo e sempre foi muito generoso com quem chegava em São Paulo vindo do Nordeste. Sempre retribuiu com bastante generosidade, todo mundo tem esse reconhecimento e gratidão com ele”, adiciona Pedro.


Na década de 1970, Aldemir contribuiu para a consolidação do acervo do primeiro museu de arte do estado do Ceará, o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc). Juntamente com o artista plástico Estrigas, Aldemir doa à UFC um conjunto de obras provenientes do Minimuseu Firmeza que compõem uma exposição retrospectiva e criam a sala permanente no museu. “O conjunto do Mauc referente à coleção do artista visual Aldemir Martins chega, principalmente, em 1979 por meio de uma doação integrada do casal Nice e Estrigas e da ação do próprio artista.


Além disso, algumas obras foram adquiridas por compra de colecionadores e junto ao próprio artista em anos anteriores a esse momento. É um conjunto de aproximadamente 50 obras, dentre as quais podemos destacar a presença dos desenhos, nas quais o Aldemir reina com muita maestria, com muita distinção, tendo ganhado até prêmios internacionais. Há também gravuras, em especial litogravuras; pinturas em acrílico sobre tela e um conjunto de seis esculturas em acrílico”, destaca a museóloga Graciele Siqueira, atual diretora do Mauc.


“A presença de Aldemir na Universidade Federal do Ceará também é demarcada quando o artista recebe todas as honrarias que podem ser dadas pela universidade, como o título de Doutor Honoris Causa. O matrimônio entre Aldemir e Mauc, de fato, configura-se nos anos 1970. O acervo no museu é um conjunto que retrata muito a cultura nordestina: são traços como rendeiras, cactos, solo sertanejo, cangaceiros e frutas da região como mangas, cajus e carambolas. É um conjunto muito interessante e que hoje está disponível na sala que foi criada para apresentar essa produção que está sob guarda do Museu de Arte da UFC.


É uma coleção que traz muito esse toque do regionalismo”, adiciona a profissional graduada pela Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e mestra em Museologia e Patrimônio também pela Unirio.


O Mauc, que possui o caráter educativo como diretriz de suas atividades, apresenta o trabalho de Aldemir aos grupos escolares visitantes. “O circuito de longa duração das exposições do Mauc é um tanto peculiar e curioso: temos salas coletivas e salas individuais desses artistas que estão presentes em grande número na coleção do museu. Destacamos a sala especial do Aldemir Martins, que apresenta muitas das questões locais. O Mauc tem como público especialistas em artes, pesquisadores em artes, pessoas que espontaneamente gostam e se interessam e visitam o museu, como também escolas e grupos acadêmicos.


A relação do público, principalmente dos grupos escolares, é sempre muito interessante: são estudantes que conhecem um Aldemir que apresenta referências facilmente identificáveis, mas que constrói a sua representação artística desconfigurando a imagem, dando outras formas. O público fica muito curioso, ‘por que o artista faz isso?’. Esse é o toque do Aldemir como um grande modernista, como um grande desenhista, esse brincar com as cores que dá para as obras”, explica Graciele.


“Contamos sobre a vida do Aldemir — quem é ele, a ascendência indígena que o artista tem por parte da mãe, a passagem pelo Exército, o reconhecimento como artista… Mas o mais interessante é quando a gente relaciona o Aldemir à literatura. Mostramos aos grupos escolares livros que eram ilustrados por artistas visuais que tinham destaque na cena artística brasileira, contamos a história do Aldemir com Jorge Amado e Graciliano Ramos. Aconselhamos que busquem Aldemir para além dos gatos, como aquele personagem que apresentou ao Brasil um pouco da cultura nordestina por meio da apresentação da primeira capa da nova Gabriela.


Apesar de ele ter migrado, de ele ter saído do Ceará, ele mantém por meio da sua produção artística uma forte relação com a região, com os personagens, com a fauna e com a flora cearense. Aldemir está muito próximo da gente, das nossas histórias e da nossa cultura”, finaliza a diretora do Mauc.


Aldemir Martins na atualidade

Aldemir Martins, Hoje e Sempre


No idos de 1936, o poeta recifense Manuel Bandeira versou “Os Voluntários do Norte”, troça sobre as desavenças entre literatos do Norte e do Sul do País. De um lado, Bandeira colocou José Lins do Rego. De outro, Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, Marques Rebelo e Vinicius de Moraes: “Quando o menino de engenho / Chegou exclamando: – “Eu tenho, Ó Sul, talento também!, / Faria, gesticulando, / Saiu à rua gritando: / — ‘São os do Norte que vêm!’”.


A rixa entre regiões, que atravessa décadas, é fruto do histórico processo colonial — mas, até hoje, constrói estereótipos de subalternidade sobre Norte e Nordeste do Brasil.


Aldemir Martins, na contramão, construiu vínculos de Norte a Sul. Foi Fortaleza em São Paulo, paulista em terras cearenses. Seu legado atravessa décadas, eterniza-se no agora que também é amanhã. Agora, a missão é louvar o cearense em sua glória.


“O Sérvulo Esmeraldo pedia sempre uma revisão da obra de Aldemir Martins — ele achava que o artista não estava sendo visto e estudado como deveria ser, carecia uma análise dessa obra. Para a obra de um artista, esse estudo é fundamental. Nos últimos 30 anos, o repertório do Aldemir não foi pesquisado como deveria e precisa ser colocado no seu devido lugar”, destaca Dodora Guimarães.


Nas palavras de Dodora, Aldemir seguirá inspirando gerações na arte. “Aldemir decidiu ser artista e se manteve artista. Ele foi um grande artista porque viveu da sua arte, viveu para pensar a arte que produziu, esteve à disposição profissional da arte. Considero Aldemir Martins uma sementeira”, defende a curadora.


“A arte do Aldemir está espalhada por aí. A obra dele tem que estar no mundo!”, defende Mariana, filha do artista. “A história do Aldemir precisa ser contada. Eu sempre me espanto com as reações ao trabalho do meu pai: ou as pessoas não conhecem nada ou amam o trabalho dele. Não há um meio-termo, não é um artista estudado na escola. O trabalho do Aldemir precisa ser conhecido em sua vastidão.”


Atualmente, filhos e netos do artista zelam pela dinamização do trabalho de Aldemir Martins. Pedro cuida do certificado de autenticidade, porque o mercado do pai é invadido por falsificações — “algumas são tão elaboradas que o Aldemir dizia: ‘Não fui eu que fiz, mas podia vir trabalhar comigo para me ajudar’’’, lembra o filho. A família dedica-se também ao catálogo raisonné de Aldemir, um tipo de publicação que mapeia todas as obras conhecidas do artista, um trabalho de vida inteira.


“Nós estamos, hoje em dia, com o Estúdio Aldemir Martins em São Paulo. Nosso objetivo é transformar o Estúdio em uma Sociedade Amigos do Aldemir para fazer exposições, preservar as obras, fazer restauração”, adianta Pedro. Para Mariana, o maior desafio é cultural: “Temos dificuldades porque não existe apoio, não existe verba. O artista é discriminado e criminalizado.


Grandes colecionadores têm quadros e desenhos do Aldemir, mas eu sinto que ele está um pouco esquecido diante da arte contemporânea — eu acho que existe um ponto de preconceito e existe um ponto de moda também. No fim da vida, ele fez muita coisa mais simples e as pessoas compravam e distribuíam. Mas é importante que lembrem-se do Aldemir não só como o artista que fazia gatos, mas, sim, ele desenhava o Nordeste em toda sua pluralidade”.


Carta de Roma a um Amigo do Ceará

Carta de Roma a um Amigo do Ceará


“Meu novo desenho é antigo. Quando, em 1953, fiz uma série de cangaceiros, líricos e truculentos, ninguém viu senão os cangaceiros, quero dizer: o assunto. Ninguém, ninguém prestou atenção ao desenho, linhas, formas, manchas. Um mês antes de partir para Roma, aí por volta de julho de 1961 – oito anos depois dos cangaceiros – retomei o filão e executarei cinco ou seis desenhos, trabalhando o mais possível com manchas e formas.


Outra vez ninguém reparou nada. Paciência.


Na Itália ataquei violentamente o assunto e então você começou a sentir o resultado. Somente assim de longe começou a perceber alguma coisa ‘nova’ envolvendo os temas, explorando-os de maneira ‘diferente’. Aqui também foi assim. Como eu estava na Europa, me chamaram até de ‘tachista’ o que, vamos e venhamos, é uma barbaridade. Os críticos faziam questão de dizer que eu era uma figura quase estranha, revolucionando o desenho.


Crítica provinciana, você não acha?


Começa pelo fato de que jamais perdi o contato com as minhas origens. Me gabo disso. Retorno sempre ao Ceará, aos seus bonecos de pano, suas figuras de carvão na parede, seus bichos no tijolo da calçada, no muro do Náutico da Praia Formosa, os navios sumários e poderosos nas fachadas das bodegas de cachaça do Pirambu. Volto aos vaqueiros ‘assinando’ o gado, às louceiras fazendo formas de panelas, bules, jarras e cacos de torrar café. E tudo isto que eu carrego comigo é o meu desenho.


Sempre foi. Sobre tudo isto meto o meu tracejado, que aprendi nas rendeiras, ponto de mosca, cruz e bico, e rendas mesmo, trançado de palhas de chapéu de catolé e de caçuá de bananas. Bananas estão sempre cheias de desenho amadurecendo. E as nódoas da banana e do caju na roupa da gente, fazendo desenhos belíssimos, você já viu? Tudo isto é o meu desenho, disso não quero e não posso me desvencilhar. Menino contando histórias e riscando o chão, ao mesmo tempo com ingenuidade e malícia, a malícia e a ingenuidade de quem sabe pescar de mão, seguir rastro de boi e caçar de visgo e arapuca. Arapuca que a minoria me empresta para fazer o quadrado do meu desenho e nele aprisionar as ‘pessoas personagens’ que invento e crio.


O que pretendo é uma imensa sinfonia de preto e branco, sons de longe, do nosso Ceará, música pianíssima às vezes, outras vezes como um trovão, mas música vista, entendida, representada, explicada por este cabra de Guaiúba que adora sol, jangada, rendeira, onda de mar, cangulo, chuva, serigüela e cheiro de terra molhada. E mais curimatá prateada e cará escuro, assim como as manchas do meu desenho. Manchas negras, pintas escuras, sombras que fogem do lombo das cavalas e se arrancham no meu desenho. Estas são as minhas raízes, que vou fazer? É por isto que eu sou, e infeliz deste teu amigo se não vivesse procurando transmitir aos outros as visões que lhe ficaram nos olhos.


Você fala na minha estrutura. Que influência que nada! Minha estrutura vem de um aluno de desenho, riscador de papel que conscientemente, aplicadamente (e apaixonadamente) também dava sua lição de riscar papel. E queria aprender a desenhar a pedra e o sol, o sol e o mar, o mar e a duna, a duna e o coqueiro, o coqueiro e o sol, o sol e a caatinga, a caatinga e o faxineiro e o mandacaru – a flor do mandacaru (a flor do mandacaru é uma planta baixa do sol, já reparaste?).


Hoje, não. Não digo que sou doutor em desenho, mas aquilo que eu quero e aquilo de que gosto ou de que não gosto com o preto e o branco. Me dou ao luxo de violentar a cor com o preto e o branco. É isso: posso fazer a cor com o preto e o branco. Cor, para mim, é acidente, conseqüência. Com o preto e o branco faço noites de luar e praias queimadas de sol amarelo-ovo. Só com o preto e o branco. Isto para mim basta. Basta também que lhe diga que outro dia, olhando a pintura etrusca, vi o quanto tenho andado certo comigo mesmo, na forma, na linha, no traço, na trama, na mancha. Vi galinhas-dangola iguais aos meus capotes, na trança, na armação, peixes primos dos meus, e gatos e galos e cachorros. Depois subi em cima de um morro que estava perto e gritei como um índio Cariri mandando todo mundo para o inferno. Como você vê, meu ‘novo’ desenho é antigo até demais. Mais antigo do que eu mesmo pensava”.


Linha do Tempo

Aldemir Martins


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Galeria

Obras publicadas no Anuário do Ceará 2022-2023