A pandemia nos transformou. Ressaltou dores e um olhar aprofundado para o invisível do senso comum. O mercado e o Estado e suas imperfeições estiveram bem expostos, redefinindo uma sociedade e apresentando mazelas, na forte natureza hobbesiana do ser humano. Nosso pragmatismo ocidental continua sem sustentabilidade, no fazer decidido, quase em uma alusão ao carpe diem, carente de conceitos e reflexões que garantam as futuras gerações. Mostrou um desastre quando da falta de diálogo e uma babel nos monólogos polarizados.
Na busca ignorante dos extremos, muitos culpados e poucas proposições. A ciência e o poder travaram uma luta épica, de dragões e cavaleiros, muitas vezes medieval e até mesmo mitológica. A arte imitando a realidade ganhou séries surreais nas telinhas de hoje, de mudanças genéticas até as conspirações geopolíticas. O final inacabado se apresentou com um elevado número de mortes antecipadas dado o simples relógio biológico. A principal comorbidade foi a social. Os vulneráveis se multiplicaram.
O desemprego ampliado e sem volta, somado à produtividade, avanços tecnológicos e inovações, que exigem pessoas com maior grau de qualificação. Líderes surgiram, comandantes caíram. A guerra fria agora se estabelece em conflitos geoeconômicos do 5G, da eficiência na produção de vacinas e novas conquistas espaciais, “conquistada” a Lua estamos chegando a Marte e a fome não consegue ser vencida ou mesmo priorizada. Novos tempos que se repetem em ciclos históricos.
Ao construir uma linha de tempo sobre as epidemias e pandemias, encontramos pistas importantes para o entendimento e uma compreensão do que está por vir. O contexto e momento históricos revelam pragas e doenças. Em recente matéria do The Economist, “os Booms no períodos pós-pandemias”, podemos ver retratos do nosso dia a dia. Começa no retrato da literatura de Vitor Hugo, Le Miserables (1864) “os ricos fugiram para as casas de campo e se protegeram”, e a personagem Cosette, nessa continuação, não altera o trabalho infantil e de mendicância nas ruas. Na sequência, um Boom em 1889, a exposição universal de Paris traria o apogeu da mudança de época no mundo real, do carro movido a água aos primeiros experimentos de energias fotovoltaicas.
Nos dias de hoje, particularizando o caso brasileiro, temos economias aglomeradas por habitações precárias de alta densidade, menos de dois m² por pessoa e ausência sanitária, sem banheiros, água limpa ou esgotamento, já proliferando inúmeras doenças, em uma relação muito desigual da sociedade. Somente no Ceará, os números da pobreza e extrema pobreza alcançam quase 3,5 milhões de pessoas, em uma população de pouco mais de 9,2 milhões, cerca de 39%, claramente, em condições subumanas. Mesmo na epidemia do cólera o amor sobreviveu, narra García Márquez. No “O Amor em Tempos de Cólera” (1985), em uma das epidemias narradas do século XIX, a dor trouxe um sentimento de maior solidariedade, de visibilidade em plena pandemia. O ano de 2020, da mesma forma, trouxe a ampliação das redes de apoio aos mais vulneráveis, vistas em todo o globo, com maior velocidade.
Em março de 2020, no início da atual pandemia, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa fez um artigo interessante sobre as epidemias e pandemias na história da humanidade. O roteiro começa nos dias de hoje, quando, em 11 de março, a OMS considerou a doença Covid- 19, difundida nos cinco continentes, na data eram contabilizadas 20.000 mortes em todo o mundo. Estava registrado o novo coronavírus, definido como uma família de doenças respiratórias. O vírus Sars-Cov-2 anunciava alterações nas dimensões sociais, políticas e econômicas. E, ao longo de um ano, o próprio teria também suas mutações. A crise sanitária sempre exigiu uma ação de múltiplas dimensões simultaneamente.
A História viveu momentos semelhantes em outras épocas. Exemplo de 427 a.C. a 430 a.C., na Peste de Atenas ou a Peste do Egito; Peste de Cipriano, 250 a.C.; na Peste Antonina ou de Peste de Galeno de 165 a.C. a 180 a.C., todas alteravam as forças existentes e dizimavam populações. Mais recentemente, a praga de Justiniano entre 541 a 750 d.C., e no século XI, a lepra ou Doença de Hansen castigou a Europa, mas foi na Grande Peste de 1347, que se estima terem sido perdidas de 1/3 a metade da população europeia. A pandemia de peste bubônica alcançou todo o mundo dito civilizado da época.
O estudo da Universidade Lisboa também descreve o intercâmbio colombiano e a morte dos astecas e dos tainos por doenças como sarampo e peste bubônica. Um mundo começando a se globalizar na contaminação intercontinental. O vírus da gripe e a cólera no eixo sino-europeu ocorreu por diversas vezes de 1580 a 1961, sendo a mais forte a Gripe Espanhola (1918-1919), no final da Primeira Guerra Mundial. Acredita-se que a letalidade tenha sido entre 50 a 100 milhões de pessoas, com um contágio de 500 milhões em todo o mundo.
Na história recente, Sida e Ebola foram os vírus mais assustadores, seguidos do H1N1 e outras variações de gripes asiáticas do terceiro milênio. Nos trópicos, Dengue, Zika e Chikungunya são descritas como preocupantes no mesmo artigo da Faculdade de Medicina de Lisboa. Em todos os casos, a dor e o avanço da civilização na medicina e tecnologia. Novos tempos, novas aprendizagens e um mundo impactado por riscos globais de doenças infecciosas que se alastram cada vez mais rapidamente.
Nada incomum na história da civilização, a não ser pela aceleração, tanto dos contágios como das vacinas. O ponto de mutação não consegue mais ser distinguido no tempo. De uma forma contínua, novas cepas/variantes – agora a variante Delta se aglomeram sem distância da humanidade. Uma compreensão de uma linha do tempo dinâmica que exige um olhar atento e profundo em um pensamento complexo, sem simplificar.
Novos modelos e ferramentas surgem e uma revisão de paradigmas. O Estado convencional pode ser reescrito no que denominamos o Estado ESG 4.0. Políticas ambientais iniciam a nova trajetória sem preconceitos ideológicos, como sobrevivência diante das variações climáticas, no novo projeto de desenvolvimento econômico. Alterações antropocêntricas no desmatamento ou plásticos nos oceanos ampliam as anomalias simbióticas na fauna e flora, incluindo a própria humanidade.
O E (envirommental) pós-pandêmico está acentuado em qualquer mercado e, principalmente, no Estado. Seguem-se as preocupações com S (Social) diante da amplitude dos hiatos cada vez maiores em todos os países do Globo, relacionados ao forte desemprego e escassez de alimentos e matéria-prima. O mercado e o Estado se assemelham e se complementam na busca da eficiência, com produtividade e desemprego. Devem, em conjunto, cooperarem para minimizar os efeitos do stress pandêmico sanitário e tecnológico e suas mutações. Nesse tripé inicial, o G (Governance) parece merecer um maior debate na chamada busca da eficiência político-institucional, definindo articulações e integração do Estado-mercado.
As ameaças à democracia e a necessidade de instituições fortalecidas estão presentes no desenho pós-pandêmico, principalmente em economias mais vulneráveis, no qual imperam populismos. Não obstante, encontraram berço nos dias de hoje em nações desenvolvidas, através de discursos hiperbólicos nacionalistas e xenófobos. A narrativa do conflito muitas vezes supera a da cooperação quando a natureza das lideranças não consegue adensar um discurso propositivo.
A ciência é um dos fatos desse destempero. Menos ciência revela menos conhecimento e uma espiral de um ciclo vicioso. A crítica não busca caminhos para os polarizados e, sim, uma destruição não criadora de soluções. No entanto, a transformação existe e ocorre velozmente. Desde 2014, o Fórum Econômico de Davos vem se manifestando com ênfase sobre a Indústria 4.0. Fronteiras de uma indústria acelerada com a robótica, big data, sistemas integrados, realidade aumentada, Cyber Security, computação em nuvem, IoTs e várias outras transformações digitais que alteram o próprio conceito para uma Indústria de Serviços.
Passamos a pandemia tecnológica, que patrocina a produtividade, reduzindo os postos de trabalhos atuais e criando postos em outras áreas, no entanto, uma mão de obra qualificada. Regiões impactadas pelo desemprego funcional terão dificuldades maiores na adaptação para a mudança de época em curso. A pandemia acelerou o futuro e a educação de uma geração se encontra comprometida. O Estado precisa trabalhar a cooperação com o mercado e juntos definir uma nova ordem de inserção sem comprometer as gerações futuras. As restrições do orçamento de capital devem ser melhor avaliadas para a escolha dos investimentos prioritários públicos e ao mesmo tempo associadas às demandas de mercado e ao novo ciclo de inovações e tecnologia das atividades produtivas.
No Brasil, celeiro do mundo, drones e máquinas se reorganizam na relação da mão de obra e trabalho, nas grandes glebas de produção agrícola. Agriculturas familiares também necessitam estar na mesma “vibe” e encontrarem cada vez mais tecnologias e desenhos cooperados, principalmente, que sejam integrados às cadeias produtivas, seja no abastecimento de insumos, seja no escoamento e comercialização.
Os desafios dessa “nova era” são muito grandes, como foram em todas as mudanças de época. Um novo iluminismo se faz presente. Embora estejamos vivendo uma esquizofrenia no debate ideológico, traduzindo extremistas ou nacionalistas, “de esquerda ou de direita”, liberais historicamente em confronto com os conservadores se alinham por razões não ideológicas, fala- se em capitalismo de Estado ou até socialismo de mercado, qualquer reflexão crítica se perde na rotulação apedeuta de que sair dos extremos é o arrependimento de um pseudo apoio a alguma facção.
A narrativa é pobre pela falta de propósitos. Os hiatos se agravaram por deformações do sistema político, alterações do sistema econômico e por manifestações populistas entrópicas sem a densidade necessária das políticas públicas e pactos intergeracionais.
O mercado segue com a adaptação às questões do ESG e em sua busca de competitividade o foco na indústria 4.0. O Estado institucionalmente deve ser desburocratizado e ter uma regulamentação adequada para as questões ambientais, aderindo aos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável até 2030. Na governança, melhorar a eficiência político- institucional e ter um Estado que melhore o atendimento dos serviços públicos, considerando a transformação digital e o papel básico na Educação, Saúde e Segurança.
No campo Social, a igualdade de oportunidades e processos de proteção social para os mais vulneráveis, definindo condicionantes que ofereçam transições. O Estado ESG 4.0 serve ao cidadão em um conjunto de diretrizes e objetivos reconhecidos internacionalmente e deve ter cada unidade subnacional signatária e comprometida com a nova plataforma, diante das questões do clima, os hiatos sociais, a eficiência e o uso dos mais modernos recursos tecnológicos.
Para muitos, essa nova era seja o real paradoxo global. Um design de um mundo acelerado em suas transformações, tecnológicas-ambientais-sanitárias, exigindo maior profundidade nas discussões e maior uso da ciência com velocidade.
Célio Fernando B Melo, economista, pós graduado em Administração Financeira e em Administração de Empresas, mestre em Negócios Internacionais, doutorando em Relações Internacionais. Atualmente, council member Carbon Disclosure Project LaTam, vice-presidente da Apimec Brasil, sócio (afastado) da BFA Investimentos. Secretário-executivo de Regionalização e Modernização da Casa Civil do Estado.